Por Milton Pires
Certa vez, há um
bom tempo atrás, e estando eu de plantão, num momento em que o movimento estava
reduzido (até pelo adiantado da hora) procurei uma dessas salas...uma dessas
coisas chamadas de “estar médico” e sentei para ler um pouco..Ocorre que na
tradicional sujeira e confusão que são esses lugares (onde nada é de ninguém)
coisa alguma havia que me interessasse. Revistas e jornais velhos, além é claro,
daqueles livros de medicina cuja atualidade só poderia fazer sucesso em Cuba.
Fuçando numa velha prateleira, acabei encontrando (vejam só que “horror” para
um hospital público num “Estado Laico”) uma Bíblia.
Estando sozinho na
sala, àquela hora da madrugada comecei a ler alguns trechos. Como sempre faço
quando tenho oportunidade vou direto ao Velho Testamento: gosto de Jeremias,
Isaías, enfim..a “turma” que andava chateada com Israel em função do estado de
coisas na época. De repente, entrou na sala o colega que até então estava
ocupado. Vendo que eu lia, perguntou do que se tratava. Respondi que era a
Bíblia e ele, num tom de zombaria, disse: “não sabia que tu eras, religioso” Eu
respondi que eu também “não sabia” e perguntei: “sou religioso porque estou
lendo a Bíblia?” Afirmou ele que sim e daí eu não resisti: “concluo, portanto,
que se eu estivesse lendo “Minha Luta” (e eu já li) de Adolph Hitler, eu seria
um nazista, não é mesmo?”
Vi que o sujeito,
sentindo-se apanhado numa armadilha, sentiu-se constrangido e resolveu não
levar mais as coisas adiante.
Contei essa
história para vocês como introdução do texto para fazer uma pergunta, e ao
mesmo tempo um comentário: Vocês poderiam me explicar de onde veio no Brasil
essa tradição de “somos o que lemos”?? Eu sinceramente não sei a resposta! Digo
mais, lembrando o quão pouco se vê gente lendo nos locais de trabalho ou em
casa hoje em dia deveríamos fazer o caminho inverso e afirmar que “quem não lê
nada, não é nada”..rsss..rsss..não é mesmo??
Escrevo, e esse é o
objetivo do texto, que a falta de “personalidade cultural” dos brasileiros
chegou a tal ponto que nada mais previsível do que julgar as pessoas e as
idéias que elas supostamente professam pela capa do livro que vemos elas lendo!
Pode haver absurdo maior do que esse??? De onde surgiu ideia tão ridícula?
Nenhuma defesa do hábito de ler, do elogio da leitura ou da sua importância
naquilo que pensamos pode justificar uma coisa como essa.
O que autoriza
alguém a pensar isso quando vê outro lendo é a falta de juízo crítico, a
incapacidade total de saber a diferença entre ler e acreditar e a vida numa
sociedade sem capacidade alguma de abstração, de transcendência ou de
extrapolação da realidade palpável, da realidade “noticiável” mais trivial. O
que pensar, pergunto eu, da maturidade ou da moral da mulher brasileira, por
exemplo se considerarmos “Cinquenta Maneira de se Masturbar” como o livro que
representa essa parcela da população?? O que dizer do homem médio e da cultura
brasileira se quisermos nos basear no volume de livros vendidos por Edir Macedo
para julgar nosso panorama intelectual??
Ler, recolher-se,
isolar-se do outro e do politicamente correto é visto popularmente como uma
identificação automática entre escritor e leitor... Quem lê a Bíblia “deve ser
alguém que a toma ao pé da letra”..quem leu Hitler “deve ser nazista” e por aí
vai...um festival de besteiras sem fim capaz de deixar a alta cúpula do
Partido-Religião e de seus lacaios dentro da Universidade Pública orgulhosos de
tanta burrice.
Em breve vai chegar
o tempo em que um novo item vai fazer sucesso nas livrarias e casas de material
de escritório. Capas para os livros que estão à venda...capas dos mais diversos
estilos: de couro, de material sintético, de pano ou simples papelão e que vão
se adaptar perfeitamente ao livro vendido podendo inclusive ser compradas na
mesma hora que ele. Vai ficar mais confortável ler assim, vai ser um ato mais
civilizado, mais discreto e politicamente correto..vai ser o tempo dos Livros
sem Títulos..
Milton Simon Pires é Médico.
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