O PANORAMA VISTO DA SERRA

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

JFK NÃO EXISTIU

por Roberto Romano

Como seria o mundo sem um Kennedy é um exercício equivalente a imaginar um Brasil sem o suicídio de Vargas, a renúncia de Jânio e o golpe militar

O Brasil é assim: a história é reescrita de dez em dez anos (como dizia Ivan Lessa); as pessoas viram pelo avesso (quem foi censurado tem agora belos motivos para censurar) e eventos e figuras históricas simplesmente não existiram. De um lado são tidos como heróis indisputáveis; do outro, são tidos como bandidos e reacionários. O crime desaparece com o julgamento do mesmo modo que as nuances de uma vida são reduzidas a duas ou três circunstâncias. As mentiras repetidas, conforme sabiam os nazistas, canibalizam os fatos e tornam-se verdades.
No Brasil do PT ficamos habituados ao tudo contra o governo ser uma conspiração, e tudo a favor, revolução. Temos, como escrevi em “Carnavais, malandros e heróis”, uma ética múltipla aplicada de acordo com a pessoa e o contexto, de modo que todos os fatos são duvidosos. Estamos mais perto de George Orwell do que imaginamos: quem controla o presente controla o passado.
O que li sobre os 50 anos da morte de JFK inspira-me. Eis um homem multifacetado e contraditório, mas preso a um papel exclusivo: o de presidente da República. Um papel que fecha biografias e, mesmo nos Estados Unidos, hierarquiza o seu ocupante como o número 1, concedendo-lhe um tratamento aristocrático. Ademais, JKF foi um presidente muito jovem e por isso muito testado pelos soviéticos na crise cubana. Era um homem muito elegante e rico, um mulherengo freguês do proto-harém de Frank Sinatra e — eis um ponto crucial — ele teve morte súbita. Foi tirado da vida num papel capital por um louco que a ele se ligou pelo poder dos fracos. Num sentido preciso, JFK foi a primeira vitima da guerra que ele próprio alimentou: a Guerra Fria.
Mesmo quem não simpatizava com a politica externa americana, como era o meu caso, foi atingido naquele 22 de novembro de 63 pela violência que tirou JFK deste mundo, lançando-o no reinado das biografias e dos mitos. O único modo de compensar moralmente o absurdo do infortúnio era imaginar algo equivalente: no minimo, uma conspiração. Ainda mais quando testemunhamos em preto e branco, como foi o meu caso, o assassinato do assassino.
Quando saí do meu escritório na Bow Street e fui para casa, vi pessoas chorando e outras em pleno desespero. Naquele momento, não havia mais republicanos e democratas, estudantes e pessoas comuns, consumidores e fornecedores, esquerdistas e reacionários, nacionais e estrangeiros, brancos e negros. Todos se transformaram em órfãos nacionais; em cidadãos cujo presidente foi levado pela tragédia que atingia a todos por igual.
Um colega, leitor assíduo de Lênin, declarou-se chocado e foi ele quem primeiro me falou em “terrorismo” como uma parte do arsenal dos que não tinham dúvida de que os fins justificavam os meios.
Naquele frio e escuro novembro, vi pela primeira vez a histeria coletiva fora do Brasil. O Brasil que muitos supunham histérico por natureza (e que em abril do ano seguinte mergulharia em algo semelhante, assassinando algumas de suas instituições republicanas), mostrou-se dotado de uma incrível capacidade de tolerar e esquecer o que não deveria ser tolerado ou esquecido, como os crimes políticos cometidos no que chamamos de “períodos autoritários”. Mas a Harvard comedida e controlada virou um amplo teatro de dor e angústia. Tal como vi décadas depois em Notre Dame, agora como professor e velho no 11 de setembro. O dia em que os americanos foram pela primeira vez na sua história, atacados em seu próprio território. Tirando, é claro, a experiência sanguinária da sua Guerra Civil, a qual, proporcionalmente falando, teve uma enorme, senão incomparável, magnitude.
Um outro elemento que depois de 50 anos surge com claridade no quadro social desta tragédia é que somos muitos. E JKF foi muita coisa, como descobrem esses Estados Unidos mais decepcionados consigo mesmos. Kennedy era um aventureiro sexual, acostumado a viver em mundos diversos e contraditórios. Por isso, talvez, ele tenha conseguido evitar uma guerra termonuclear a partir da crise cubana, como diz de modo explicito o premier da União Soviética, Nikita Khushchev, nas suas memórias. Ali, o russo relata os esforços dos irmãos Robert e John Kennedy no sentido de evitar o pior, diante de um Fidel Castro muito justificadamente irritado e inflexível, porque para ele era óbvio que Cuba estava sendo usada como um teste para os Estados Unidos no grande confronto com a União Soviética.
A imagem de Kennedy como a de outros heróis americanos tem sido reavaliada com mais parcimônia e realismo. Afinal, ele foi um líder contra o bom e hoje velho e caduco comunismo, e foi no seu governo que a Guerra do Vietnã começou. Mas não se pode esquecer do seu papel como deflagrador do movimento dos Direitos Civis nuns Estados Unidos segregados.
Como seria o mundo sem um Kennedy é um exercício equivalente a imaginar um Brasil sem o suicídio de Vargas, a renúncia de Jânio e o golpe militar. Ou, o Lulopetismo e figuras como José Dirceu, que comandou o Brasil como o capitão do time do governo Lula e hoje comanda uma cela na Papuda.  

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