Artigos - Cultura
Caminhava
pelo centro da cidade quando vi a seguinte frase pichada no muro: “Todo
camburão tem um pouco de navio negreiro”. Parei por um momento e
refleti. Além da ofensa à memória dos escravos – por compará-los a
bandidos –, tenho certeza de que a frase fez Castro Alves revirar-se no
túmulo. A obra do poeta baiano merece destino melhor. Longe de ser
parecido com um navio negreiro, camburão é o veículo adequado para
transporte de pichadores e vândalos em geral.
Depois
soube que a frase pichada é título de uma composição da banda O Rappa.
Imediatamente tudo se explicou. O Rappa – ao lado de Mano Brown, Marcelo
D2 e outras celebridades – vem a ser um dos ícones do lixo musical
produzido em série no País. O repertório dessa turma está para a música
da mesma forma que um panfleto dos black blocs ou um exemplar do Granma
estão para a literatura universal.
Fiquem
atentos, vestibulandos. Em breve a frase pichada no muro será utilizada
como tema em provas do ENEM – se é que isso já não aconteceu. Neste
último exame, uma das questões citava a obra de Gabriel O Pensador, em
que ele canta (ou melhor, diz): “Se liga aí que te botaram numa cruz e
só porque Jesus sofreu não quer dizer que você tenha que sofrer”.
Não
entrarei em considerações estilísticas ou teológicas sobre a passagem
mencionada. Lembro apenas que o Brasil dispõe de uma ampla galeria de
poetas. Só para ficar no último século, temos Bandeira, Drummond,
Cabral, Cecília, Mário Faustino, Jorge de Lima, Murilo Mendes, Vinicius
de Moraes, Bruno Tolentino. Se o caso é citar autores vivos, temos
Ferreira Gullar, Ivan Junqueira, Alexei Bueno, Adélia Prado, Carlos
Nejar, Paulo Henriques Britto, Miguel Sanches Neto.
Na
minha adolescência, os vestibulares passaram a mencionar Chico Buarque,
Caetano Veloso, Gilberto Gil. Mas as canções desses senhores – hoje
convertidos em paladinos da censura – ao menos apresentavam algum
vestígio de qualidade poética. Hoje, não. Chegou o tempo em que é
preciso fingir que O Rappa, Gabriel O Pensador, Marcelo D2 e Mano Brown
produzem arte – e não lixo.
No
Leste Europeu, uma das formas de punição aos adversários do regime
comunista era impedir o acesso de seus filhos à universidade. No Brasil
já ocorre algo semelhante. Só é aprovado no ENEM quem pensa ou finge
pensar em termos esquerdistas. Se o pobre candidato não encontrar poesia
em Gabriel O Pensador – ou caráter em Karl Marx, ou heroísmo em Che
Guevara, ou inteligência em Paulo Freire – está automaticamente fora.
Perdeu, playboy.
– Crônica publicada na Gazeta do Povo. A seguir alguns comentários provocados pelo texto:
10 de novembro de 2013
Paulo Briguet é jornalista.
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