Como
costuma acontecer, Janaína Conceição Paschoal, advogada e professora
livre docente de Direito Penal na USP, põe os devidos pingos nos “is”.
Em artigo exclusivo para este blog, a professora faz a necessária
distinção entre a Teoria do Domínio do Fato e a Teoria do Domínio da
Organização. A primeira, ela evidencia com fartura de exemplos, está
presente em nosso ordenamento jurídico, é largamente estudada na
academia e não constitui, à diferença do que andam dizendo por aí, nem
novidade nem exotismo. O “juristismo mensaleiro”, isto afirmo eu, está
tentando investir na confusão. Sustenta e demonstra Janaína que, ao
estudar o “concurso de pessoas”, um estudante iniciante de direito já
entra em contato com a Teoria do Domínio do Fato”. E esta foi aplicada
com correção pelos ministros do Supremo.
O que o
tribunal não fez — embora alguns queiram acusá-lo disso — foi aplicar a
Teoria do Domínio da Organização. Tivesse sido assim, aquele que foi
apontado como o chefe do esquema não teria sido condenado por dois
crimes apenas — corrupção ativa e formação de quadrilha —, mas por todos
os praticados pelos envolvidos. Escreve Janaína: “Contrariamente
ao que vem sendo afirmado, uma decisão judicial que procura estabelecer
as responsabilidades dos diversos intervenientes em um crime, com base
na Teoria do Domínio do Fato, é uma decisão garantista, que segue à
risca o Artigo 29 do Código Penal, segundo o qual o agente deverá ser
responsabilizado na medida de sua culpabilidade”. Assim, caros leitores,
a Teoria do Domínio do Fato é, antes de mais nada, “garantista”.
Os
mensaleiros e alguns dos seus porta-vozes na imprensa estão fazendo uma
confusão dos diabos entre os vários conceitos. Em seu artigo, a
professora lembra que empresários que se associam a políticos para
cometer determinados crimes podem acabar, como aconteceu, pegando penas
maiores do que aqueles a quem eventualmente servem. E assim é porque
elas estão sendo arbitradas segundo o crime de cada um.
Abaixo, segue um trecho do artigo. A íntegra está aqui. Não deixe de ler. Trata-se de uma aula primorosa. É um privilégio poder publicá-lo. Leiam trechos.
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Muito se tem falado da Teoria do Domínio do Fato nos últimos tempos. Há quem a identifique com o nazismo, e há outros que, mesmo não indo tão longe, aproximam-na da responsabilidade objetiva, mediante a qual uma pessoa é penalizada pelo cargo que ocupa. Nesse debate, também há intervenções que findam por relacionar a Teoria do Domínio do Fato à teoria da prova — por conseguinte, não são poucos os analistas que, defendendo ou criticando, aduzem que a Teoria do Domínio do Fato admitiria condenação com fulcro em indícios. Em um primeiro momento, soa salutar que uma questão tão afeta aos Manuais de Direito Penal esteja sendo largamente discutida pela sociedade. Diferentemente de grande parte dos acadêmicos, vejo com bons olhos essa apropriação do técnico pelo homem comum. Como admiradora da obra de Jurgen Habermas, acredito que a democracia não se faz apenas nos gabinetes. Não obstante, não é possível calar diante das impropriedades que vêm sendo propaladas acerca de tão antiga e assentada teoria. Se as imprecisões fossem arguidas pelos profissionais envolvidos em determinada causa, na tentativa de defender seus clientes, não seria caso de fazer reparos. Ocorre que os impropérios vêm sendo anunciados, nos mais diversos meios de comunicação, por pessoas que não têm envolvimento direto na defesa de quem quer que seja e, por conseguinte, gozam de maior confiabilidade, dada a isenção. O resultado disso é que a população está recebendo informações equivocadas acerca da Teoria do Domínio do Fato, que está umbilicalmente ligada à responsabilidade subjetiva.
*
Muito se tem falado da Teoria do Domínio do Fato nos últimos tempos. Há quem a identifique com o nazismo, e há outros que, mesmo não indo tão longe, aproximam-na da responsabilidade objetiva, mediante a qual uma pessoa é penalizada pelo cargo que ocupa. Nesse debate, também há intervenções que findam por relacionar a Teoria do Domínio do Fato à teoria da prova — por conseguinte, não são poucos os analistas que, defendendo ou criticando, aduzem que a Teoria do Domínio do Fato admitiria condenação com fulcro em indícios. Em um primeiro momento, soa salutar que uma questão tão afeta aos Manuais de Direito Penal esteja sendo largamente discutida pela sociedade. Diferentemente de grande parte dos acadêmicos, vejo com bons olhos essa apropriação do técnico pelo homem comum. Como admiradora da obra de Jurgen Habermas, acredito que a democracia não se faz apenas nos gabinetes. Não obstante, não é possível calar diante das impropriedades que vêm sendo propaladas acerca de tão antiga e assentada teoria. Se as imprecisões fossem arguidas pelos profissionais envolvidos em determinada causa, na tentativa de defender seus clientes, não seria caso de fazer reparos. Ocorre que os impropérios vêm sendo anunciados, nos mais diversos meios de comunicação, por pessoas que não têm envolvimento direto na defesa de quem quer que seja e, por conseguinte, gozam de maior confiabilidade, dada a isenção. O resultado disso é que a população está recebendo informações equivocadas acerca da Teoria do Domínio do Fato, que está umbilicalmente ligada à responsabilidade subjetiva.
Preocupo-me,
especialmente, com os jovens juízes e também com os jovens membros do
Ministério Público, que, induzidos a erro, poderão realmente acreditar
que alguém possa ser acusado e condenado sem provas e que tal
arbitrariedade se dê com fulcro na Teoria do Domínio do Fato. Situação
que, para uma penalista, soa como verdadeira heresia. Qualquer aluno
iniciante no Direito Penal, ao estudar o concurso de pessoas, entra em
contato com a Teoria do Domínio do Fato. Já em 1992, quando eu cursava o
segundo ano da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, na
disciplina Direito Penal-Parte Geral, o saudoso Professor Antônio Luís
Chaves Camargo discorria sobre tal teoria com absoluta familiaridade. Em
1996, quando eu estava no quinto ano da Faculdade, o Professor Miguel
Reale Júnior, na disciplina Temas Fundamentais de Direito Penal,
revisitou o concurso de agentes, tratando largamente da Teoria do
Domínio do Fato. Seguindo o exemplo de meus mestres, também eu, desde
que comecei a dar aula de Direito Penal, explico aos meus alunos que o
concurso de pessoas, também designado por concurso de agentes, está
completamente centrado na Teoria do Domínio do Fato.
Com
efeito, diz-se que há um concurso de agentes quando um mesmo crime é
cometido por mais de uma pessoa. Assim, quando um grupo se une para
matar alguém, ou para roubar um banco ou para desviar dinheiro público,
está-se diante de um concurso de agentes no homicídio, no roubo, ou no
peculato. O fator que determina o concurso de agentes é a unidade de
desígnios, a vontade de unir-se a outrem para a prática de um crime.
Todos os concorrentes devem querer a consecução do delito. Uma vez
constatado o concurso de agentes, faz-se necessário estabelecer o papel
de cada um dos concorrentes. Nosso ordenamento jurídico, a doutrina e a
jurisprudência admitem duas possibilidades: o concorrente pode ser
coautor, ou partícipe. É aqui que entra a Teoria do Domínio do Fato.
Destaque-se
que ela não tem nada a ver com responsabilidade objetiva nem com
provas. A Teoria do Domínio do Fato se aplica no momento de verificar se
um determinado concorrente, em um determinado crime, tinha ou não
domínio sobre o fato. Se ficar definido que ele tinha esse domínio,
está-se diante de um coautor; se ficar definido que ele não tinha tal
domínio, está-se diante de um partícipe.
O coautor e o partícipe
O partícipe é o agente (ou concorrente) que, apesar de não ter realizado o verbo do crime (ele não esfaqueou, não recolheu o dinheiro, não realizou diretamente o desvio…), auxiliou, induziu, ou instigou o outro a realizar. A análise da jurisprudência mostra que, em casos de roubo a bancos, ou a residências, muito se discute se o agente (ou concorrente), que ficou do lado de fora, deve ser tratado como coautor ou como partícipe; e o critério para essa definição é justamente a existência de domínio sobre o fato. Esse domínio, na maior parte das vezes, é determinado com base na natureza essencial, ou não, da colaboração daquele sujeito para o sucesso da empreitada criminosa. Isso significa dizer que, se os demais agentes puderem consumar o roubo independentemente da colaboração do sujeito que ficou aguardando do lado de fora, está-se diante de um partícipe. Por outro lado, se a colaboração desse sujeito for essencial à consumação do delito, está-se diante de coautoria.
O partícipe é o agente (ou concorrente) que, apesar de não ter realizado o verbo do crime (ele não esfaqueou, não recolheu o dinheiro, não realizou diretamente o desvio…), auxiliou, induziu, ou instigou o outro a realizar. A análise da jurisprudência mostra que, em casos de roubo a bancos, ou a residências, muito se discute se o agente (ou concorrente), que ficou do lado de fora, deve ser tratado como coautor ou como partícipe; e o critério para essa definição é justamente a existência de domínio sobre o fato. Esse domínio, na maior parte das vezes, é determinado com base na natureza essencial, ou não, da colaboração daquele sujeito para o sucesso da empreitada criminosa. Isso significa dizer que, se os demais agentes puderem consumar o roubo independentemente da colaboração do sujeito que ficou aguardando do lado de fora, está-se diante de um partícipe. Por outro lado, se a colaboração desse sujeito for essencial à consumação do delito, está-se diante de coautoria.
Importante
destacar que, seja na condição de coautor, seja na condição de
partícipe, o concorrente sempre responde pelo crime na medida de sua
culpabilidade, como manda o Artigo 29 do Código Penal, o qual, em seus
parágrafos, prevê situações em que o partícipe pode receber punição mais
branda que os autores ou coautores. Percebe-se que, ao avaliar uma
determinada situação concreta, quando o intérprete chega à Teoria do
Domínio do Fato, ele já está convicto de que há provas para incriminar o
concorrente, ou seja, provas de que havia unidade de desígnios, de que
ele queria a prática do delito. O desafio é apenas definir qual a
natureza do papel desempenhado: coautoria ou participação.
Em seu
artigo 62, Inciso I, o Código Penal até possibilita que aquele que não
se envolveu diretamente na consecução do crime seja punido de maneira
agravada com relação aos demais concorrentes caso tenha promovido,
organizado, ou dirigido a atuação dos demais. Apenas a fim de evidenciar
que a Teoria do Domínio do Fato não tem nada de novo no nosso
ordenamento, transcrevem-se trechos de algumas obras, chamando a atenção
para o fato de haver livros do final da década de 90 tratando
naturalmente do tema.
(…)
(…)
Teoria do Domínio da Organização
Talvez, esteja havendo certa confusão entre a Teoria do Domínio do Fato e a Teoria do Domínio da Organização. É essa teoria, elaborada por Claus Roxin, que prega que, no âmbito de uma organização criminosa, o líder, ao instituir determinadas normas, responderá pela atuação de qualquer membro do grupo que tenha praticado crimes seguindo referidas normas. Costumo dar o seguinte exemplo em sala de aula: “Imagine que o chefe de uma organização mafiosa determine que qualquer membro do grupo, que venha a dormir com a mulher de um parceiro deverá ter seu pênis decepado. Caso um dia, um membro do grupo criminoso, ao flagrar um parceiro com a esposa de outro, venha a concretizar a norma posta pelo líder, este poderá ser responsabilizado. Pressupõe-se, portanto, que o líder da organização criminosa tem o domínio sobre todos os fatos perpetrados com base em suas regras, ainda que não tenha conhecimento de um ato específico.
Talvez, esteja havendo certa confusão entre a Teoria do Domínio do Fato e a Teoria do Domínio da Organização. É essa teoria, elaborada por Claus Roxin, que prega que, no âmbito de uma organização criminosa, o líder, ao instituir determinadas normas, responderá pela atuação de qualquer membro do grupo que tenha praticado crimes seguindo referidas normas. Costumo dar o seguinte exemplo em sala de aula: “Imagine que o chefe de uma organização mafiosa determine que qualquer membro do grupo, que venha a dormir com a mulher de um parceiro deverá ter seu pênis decepado. Caso um dia, um membro do grupo criminoso, ao flagrar um parceiro com a esposa de outro, venha a concretizar a norma posta pelo líder, este poderá ser responsabilizado. Pressupõe-se, portanto, que o líder da organização criminosa tem o domínio sobre todos os fatos perpetrados com base em suas regras, ainda que não tenha conhecimento de um ato específico.
A teoria
domínio da organização NÃO se confunde com a Teoria do Domínio do Fato. O
autor português Jorge Figueiredo Dias deixa bem evidente tal
diferenciação.
“Com
o exposto não se pretende afirmar que o domínio-da-organização se possa
aplicar a todo o âmbito do crime organizado. Logo na sua primeira
formulação, Roxin fazia depender o funcionamento daquela categoria da
circunstância de se acharem preenchidos três requisitos: 1) trata-se de
um aparelho organizado de poder, com uma estrutura hierarquizada rígida;
2) verificar-se uma efetiva fungibilidade do autor imediato, o que
implica possuir a organização em causa uma certa dimensão, e, 3), por
fim, haver-se o aparelho de poder desligado da ordem jurídica, optando,
como um todo, pela via criminosa.
A
partir daqui Roxin concretizou tais requisitos isolando as duas
situações-tipo em que o domínio-da-organização pode, em seu entender,
funcionar como fundamento da autoria mediata: por um lado, a hipótese de
uma organização política, militar ou policial que se apodera do
aparelho de Estado; e de que podem constituir exemplos – infelizmente
entre tantos outros – o sistema nacional-socialista alemão, o regime
comunista da RDA ou as ditaduras militares da América Latina; e, por
outro lado, movimentos clandestinos, organizações secretas e associações
criminosas que têm objetivos adversos à ordem jurídica estabelecida e,
pelo poder de que dispõem, como que constituem um “Estado dentro do
Estado”.
A
estes dois casos se resumiria, pois, o campo de aplicação do
domínio-da-organização. Para além deles, não se encontrariam preenchidos
os três pressupostos acima indicados, pelo que, mesmo em se tratando de
criminalidade organizada, apenas poderiam intervir os demais critérios
do domínio-do-fato…” (Jorge de Figueiredo Dias. Questões Fundamentais do
Direito Penal Revisitadas, São Paulo: RT, 1999, p. 366).
É verdade
que Claus Roxin chegou a rever essa sua teoria (a do domínio da
organização). No entanto, seu arrependimento não se deu por força de sua
aplicação às organizações criminosas. O arrependimento do autor se
verificou porque sua teoria foi erroneamente aplicada no âmbito da
criminalidade econômica, punindo-se, por exemplo, o presidente de uma
empresa, que tem finalidade lícita, por um suposto crime ocorrido na
ponta (pode-se pensar em um não recolhimento de tributo, uma infração
ambiental, ou mesmo um crime contra o consumidor). Em outras palavras, o
que incomodou o autor foi o fato de uma teoria criada para ser aplicada
a organizações precipuamente voltadas para o crime ter sido desviada
para punir pessoas ligadas a instituições com finalidade lícita. Aqui
sim, seria possível vislumbrar responsabilidade objetiva.
(…)
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Contrariamente
ao que vem sendo afirmado, uma decisão judicial que procura estabelecer
as responsabilidades dos diversos intervenientes em um crime, com base
na Teoria do Domínio do Fato, é uma decisão garantista, que segue à
risca o Artigo 29 do Código Penal, segundo o qual o agente deverá ser
responsabilizado na medida de sua culpabilidade. E isso eu não estou
dizendo agora, por força da celeuma criada em torno do mensalão. Eu
escrevi que a Teoria do Domínio do Fato está relacionada à garantia da
responsabilidade penal subjetiva em 2009, quando depositei minha tese de
livre-docência, intitulada Ingerência Indevida, posteriormente
convolada em livro. Aliás, ainda que discorde de alguns posicionamentos
adotados pelo Supremo Tribunal Federal, durante o julgamento do
mensalão, é impossível deixar de reconhecer a total observância de todas
as garantias individuais. Em muitos momentos, deve-se dizer, essa
observância foi muito maior que a verificada em qualquer outro caso
neste país.
(…)
(…)
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