Postado no Blog do Noblat
Ruy FabianoA ignorância política – o
desconhecimento dos mais elementares princípios da separação dos poderes
da República e do funcionamento das instituições - é um dos fatores
determinantes da crise de representação, que indispõe, neste momento, a
sociedade brasileira e seus governantes.
Isso explica
reivindicações conflitantes nas manifestações de rua. Criticam-se os
partidos políticos, a qualidade dos serviços públicos, o governo e a
carga tributária, mas, simultaneamente, pedem-se mais políticos, mais
governo, mais carga tributária.
Pegue-se uma, entre as muitas
exigências expostas nas ruas: a tarifa zero nos transportes públicos.
Sua adoção pressupõe a estatização plena do setor, o que significa mais
governo, mais políticos, mais chances à corrupção, mais tributos.
Há
também, explícita, a ideia de que o governo federal pode tudo: prender
políticos corruptos, mudar as leis, refazer, por decreto, o país. Não se
tem a mais remota ideia de como funcionam os poderes e os limites de
cada qual. Não é casual que a presidente da República seja a mais
penalizada pelos manifestantes.
É como se dela tudo dependesse. E
ela reage como se assim fosse, mandando pacotes com propostas
improvisadas e até exorbitando de sua jurisdição, ao propor plebiscito
para a reforma política ou mesmo a convocação de uma assembleia
constituinte (da qual teve de recuar, por inconstitucional).
Mesmo
segmentos em tese mais preparados exibem essa espantosa ignorância. Há
dias, chegou às mãos da presidente Dilma Roussef uma “Carta Pública dos
Povos Indígenas do Brasil”, preparada por ONGs que cuidam da causa, com
destaque para o Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
São,
pressupõe-se, entidades especializadas, que deveriam conhecer os
princípios fundamentais de organização e funcionamento do Estado. Mas
exibem a mesma ignorância flagrada nos manifestantes de rua. Pedem (ou
exigem) à presidente o que não está a seu alcance atender.
Exemplo:
“Não admitiremos retrocessos na garantia dos nossos direitos, por meio
de iniciativas legislativas (...)”, diz a carta, em certo trecho. Ora, a
presidente não pode impedir iniciativas legislativas (aliás, ninguém).
Pode, no máximo, se aprovadas, vetá-las, cabendo, no entanto, ao Legislativo o direito de derrubar-lhe o veto.
No
sistema presidencialista, Executivo e Legislativo só podem ser
dissolvidos por dois meios: golpe de Estado ou eleições. Excluindo-se o
primeiro, sempre uma tentação a grupos radicais, resta o segundo. O
Congresso que aí está, goste-se ou não, foi eleito pelos mesmos
manifestantes que o querem agora derrubar. Mas, para tanto, só há um
meio: o golpe.
No sistema parlamentarista, em que o Congresso é
eleito por até quatro anos, prevê-se sua dissolução pela via
democrática, em situações de crise de governo, com a convocação de novas
eleições.
O parlamentarismo, no entanto, foi rejeitado em dois
plebiscitos (1961 e 1993), o que faz supor que a sociedade brasileira
apoia o sistema presidencialista, adotado desde a Proclamação da
República. Será? Improvável.
A complexidade do tema e a maneira
ligeira e manipulada com que, nas duas ocasiões, foi exposto ao público
fazem supor que o eleitor não sabia exatamente no que estava votando.
Em
ambas as ocasiões, o público não foi informado da natureza e
funcionalidade de cada um dos sistemas, apresentados sob um viés
ideológico, que comprometeu a consulta.
Em 1961, até a Guerra Fria
entrou em pauta. Em 1993, embora ela já não estivesse formalmente em
pauta, o conteúdo não foi diferente. Houve até um fato inusitado: o PT,
em seu primeiro programa no horário gratuito, pela voz de Lula, defendeu
o parlamentarismo. Do segundo em diante, se opôs.
Nas ruas, o
povo reclama das consequências, mas ignora – e, portanto, não vai às
causas. O Congresso, beneficiário do sistema em vigor, investe num
varejo que não muda nada e nem efeito sedativo chega a ter. Derruba um
projeto polêmico, aprova outro, de índole demagógica, e espera assim
acalmar o público.
A presidente providencia pacotes, faz
discursos, afrouxa os cordões da economia e busca ganhar tempo. O
Judiciário, por sua vez, manda prender um deputado, cuja sentença
condenatória lá estava há anos, promete acelerar o mensalão e coisas do
gênero. Ninguém vai à raiz do problema.
O público percebe o jogo
de cena, mas ignora a essência da questão e pede mais Estado, que,
assim, protagoniza simultaneamente o papel de herói e vilão da mesma
história.
O governo cooptou as principais entidades da sociedade
civil, que ao tempo da ditadura foram fundamentais para a reconquista da
democracia. Por aí, não há muito o que esperar. A sociedade civil
organizada está aparelhada. Em tal contexto, amplia-se o raio de ação de
aventureiros e golpistas.
Ruy Fabiano é jornalista.
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